Trechos

Livro I
Sexo e Consequência





Gozo Astral
Rendo-me à possibilidade de cruzar os meus três signos com os três signos dele. É que, com nove combinatórias para brincar de dar certo, eu finalmente poderei tirar as rendas da gaveta: vermelhas, pretas, marciânicas, netúnicas. E com marte em libra, vênus em libra, a vida na balança, eu me rendo para livrar-me de todo cio sem ópio, amém.

A Cara da Aids
Eu tenho medo da aids. Tenho mesmo. E dos grandes. Medo de um dia me tornar soropositiva por qualquer deslize meu. Eu! Eu que vou ter deixado de me cuidar, eu que vou ter transado sem camisinha, eu que isso, eu que aquilo. Eu e mais ninguém.

Transtornos de Sujeito
É o balizamento que incomoda: as mulheres são de vênus, os homens são de marte; elas fazem amor, eles fazem sexo. Para a nova tendência: mulheres seguras, homens assustados. No entremeio do jogo da vida, o relacionamento: por que os homens mentem e as mulheres choram? Elas isso, eles aquilo. E tem muita gente graúda profetizando os mantras que se repetem.


Livro II
Cédula de Identidade





Compre-me Agora ou o Azar Será Só Seu!
E fez-se a bancarrota no mercado financeiro. Desta feita vai a dica que lhe dou com muito segredo: compre-me agora ou o azar será só seu! Quem avisa, amigo é. Com a economia gerando instabilidade nas bolsas de valores continentes afora, só não me compra quem já morreu, quem já passou por esta vida e não viveu, ou quem tem medo de investir no presente num mercado de futuros.

Ninhos Virtuais
Não foi por querer, eu juro, mas com tantos códigos na internet, desses que dão preguiça de ler, às vezes todos me parecem iguais. Quase sempre, confesso. Então me desculpe pelo troca-troca, se eu lhe confundi e achei que você fosse outro. Não é nada contra sua pessoa, longe disso. Sou eu que não tenho grande paciência para ficar arrastando o cursor de lá pra cá, de cá pra lá, para saber um nome escondido debaixo de tantos caracteres bonitinhos – estrelinhas, sóiszinhos, sorrisinhos, piscadinhas, beijinhos, boquinhas, coraçõezinhos, etcétera-etceterazinhos – que aparecem no meu messenger e que, honestamente, deixa a coisa um tanto rasa.

Mais Não Sou
Pela enésima vez que os pingos caiam nos is. Mais não sou. Não sou vênus nem marte, tango nem tragédia, goiabada ou queijo. Sou de prosa e justa média. Nem boa nem má, nem isso ou aquilo. Feliciana: as coisas que eu digo e o que me dizem, o que eu faço e o que eu deixo de fazer, as contas que me dou. Entendeu agora?


Livro III
Andamento e Compasso





Galopeio
- Não vou só, seu Zé, há a esperança do encontro em mim.
- Pois então vamos festá. Já, e pra quando o ano findar.

Tun-Tun, Tic-Tac!
Estava tudo azeitado quando ela ficou frente a frente aos décimos de segundos que cortavam o asfalto. Eu achei ótimo porque eu poderia me distrair fazendo fotos. Clic. Uma gente daqui. Clic. Uma gente dali. E outra, e outra, e outra. Pés, mãos, rostos em todo metro quadrado. Tun-tun. Minúsculas frações temporárias. Tic-tac.

Cento e Cinco
Os meus trinta, os seus quarenta, os cinquenta de alguns já devem dar um bom caldo. Imagina a somatória de muitos? Pode ser que, tirando as exceções, uma andorinha só não faça verão, mas quem está à beira – e em qualquer idade se está à beira –, o jeito é sair de cima do muro e fazer um pouco a mais de planos, até os cento e cinco, dona Francisca que o diga.


Livro IV
Subjetividades Urbanas




Coração Paulistano
Não, hoje não. Hoje eu não vou desfilar uma cidade, ou o que nela acontece. Não quero saber do mendigo, dos meninos nos faróis, nem do sequestro que invadiu minha família nesta semana. Nada disso. Outras sensações, diferentes de medos e frustrações, traumas e angústias. Tampouco me vale dizer sobre a alegria entre os muros de concreto, vitórias e rebentos. Quero dizer do corpo que acompanha isso tudo.

Ferro, Fogo, Cupim
É nessa busca incessante de quem sou que historicamente vou me inserindo numa cidade na qual, até pouco tempo atrás, acreditei ser apenas ruínas de velhos governos e políticas permanentes, iguais desde quando nasci, e esta sempre foi a minha alienação. As mesmas fachadas das casas, com a diferença de, hoje, estarem com suas carcaças consumidas, marcadas a ferro, fogo e cupins.

Luzes no Horizonte
Eu quero trocar de quarto como quem troca de alma. Faz tempo que o peso da minha ausência me questiona e não me alivia. Toneladas de argamassa reparam os furos de um vazio latente, de um corpo que vai e não se encontra. Não chega, não existe, sucumbe nos lugarejos sem dono, nas aldeias, na distância.


Livro V
Olhares Cotidianos




Walter Shopping Benjamin
Mas talvez seja apenas meu cansaço desta mulher “eu não sou feliz, mas tenho marido” que vira-e-mexe encontro nos estacionamentos, nos elevadores e nos shoppings da cidade.

A Vida Como Ela É!
Mesmo mantendo-me à distância – por querência – me abotoo de cara com o clichê: “te dou a minha vida, meu amor!”. E o que muitos esperaram anos para ouvir, bate em mim como uma catástrofe, numa oferta que expulso apenas por acreditar não haver maior crueldade com sentimento tão nobre, quando pra valer. É que este deixar de ser – dia pro’utro – me angustia e não me faz sentido.

Todo Instante
É o vazio do mundo que me derruba, apenas isso. O olhar caído, lânguido, no minuto em que me coloco no lugar do outro, daquele que sente fome, sede ou frio. Me dói nos ossos, os que estão em guerra com outras nações, os que empunham suas armas contra si próprios. Me dói na dança e o instante me faz parar, querer sair, sentar na mesa ao lado para que, de ausência, eu me restabeleça orbe. Fraqueza.


Livro VI
Cancioneiro Íntimo




Acompanhamentos
Vá, pode ir, que eu não quero nem saber do homem que se torna autêntico apenas quando aceita a solidão como o preço de sua própria liberdade e nem daquele que acredita que ser só é a condição originária de todo ser humano.

Pensamentos Clandestinos
É difícil, não é? Desiludir-se e dar-se de cara com um espelho a lhe dizer que sua diferença o torna ainda mais igual. (Afasta de mim esse cálice). Que sua particularidade não faz de você um ser único, apenas parte de um conjunto semelhante e cheio de uma gente assim, tal como você, tão diferente, tão particular e tão singular – igual a tantos outros num mundo com tantos iguais e a lhe dizer que toda sua liberdade não é absolutamente sua. (Só pra não dizer que não falei das flores).

Bem-Estar
Um furo no espaço preenchido de ar, gás e metáforas. Um cancioneiro (quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão...) ou uma marcha (hei você aí me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!). Um tango (el dia que me quieras...), um samba-canção (alguém com tu, assim como tu...), um bolero (un poquito de tu amor, un poquito nada más) ou um fado ( ).


Livro VII
Língua Crônica




Do Plural, A Impluralidade
Nós, el-rei, faço saber que sempre quando leio algo supostamente reflexivo, subjetivo, eu pergunto: e este "nós" do texto? Nós isto, nós aquilo, nós para todo lado. Comprovamos, percebemos, reprovamos, ou: "se for para colaborar com a equipe, nós estamos disposto – no singular, sim! – a tudo, mas eu prefiro a zaga".

Narrativa Crônica
É como uma Galáxia em que os fenômenos nebulosos complementam-se entre si, tampouco estejam em relação direta uns com os outros. De quando eu era criança, nas observações de Sagitário e na procura de um buraco negro que se velava atrás das estrelas, as interpretações eram aquelas oriundas de vozes em planetários. Havia uma auto-suficiência no fenômeno, que o tornava único, mas diluído numa cadeia de experiências de fótons, neutros e prótons.

Meu Querido Caipirês
Que me desculpe o bom literato, mas eu vou pinchar fora o português culto, meu inglês curto e ficar mesmo com o bom e velho caipirês. Valha-me Deus, mas que gastura ler Machado de Assis na língua do estrangêro! Eu é que num vô mais dá trela pro ingrêis; eu vô é dá o pira lá pras banda do matagar, deitar na rede, aprendê a fazer broa-de-mio, café e fubá. Veiz-otra parar um bocadinho pra modo de vê meu homi cendendo sua páia bem lá no meio dos bredo... que belezura. Que coisa linda de se ver, sô, o pôr-do-sol um pouco antes da noite alumiada.


Livro VIII
Temporalidades




Homens de Televisão
Falou do Obama, do mercado de capitais, da crise provocada pelos EUA, do homem que caçava pipas, da menina que roubava livros, dos irmãos Castro, Raúl e Fidel. Do ministro da França e da rainha da Inglaterra. E bem no meio de tantas reflexões socialistas, democratas, capitalistas e protestantes, ele me abriu o jogo, disse que marcou o almoço só para me agradecer por eu tê-lo feito desistir de guardar os sábados.

Promessas Vãs
Tu estás a um passo de deixar que te paralisem e a outro para igualar-te ao resto da humanidade, com promessas vãs. E eu queria ter por onde te desbravar, para incomodar, cutucar e, num sobressalto, ver-te soltando fogo pelas ventas, inconformado e maldizendo-me da boca para fora. Que esta tua calmaria é ilusória. Que ser quem tu almejas requer inflamar, que é diferente de durar.

Fugit
Há um buraco. Um estofo. Um ponto de encontro feito de um vazio que aponta, reclama, barganha: afinal, quando é que vão me perceber, hein? Quando é que vão olhar para o meu dentro? Para a verdade que me constitui no dentro? Será que um dia alguém vai entender?

Língua Crônica

Língua Crônica
Autoria: Fernanda de Aragão
Projeto Editorial e Gráfico: Fernanda de Aragão
Consultoria Editorial: Solange Pereira Pinto
Revisão de Texto: Josefina Neves Mello
Editoração Eletrônica: Marina Avila
Capa: Rodolpho Ramirez e Kátya Teixeira
Ilustrações: JAL